Uma pequena análise sobre as ameaças que pesam sobre o Bioma da Cachoeira e a nascente do “Pinga” do rio Salgado em Missão Velha
Num passado não muito distante ele era tido como um local famoso – Uma nascente como tantas que noutros tempos abundavam pelo Cariri equilibrando a vida e, em especial a vazão cotidiana do rio Salgado. Antes, toda a cidade pelos menos sabia da sua existência ao contrário do que ocorre nos dias atuais. Visto que era uma das muitas maravilhas naturais da não menos famosa e lendária Cachoeira de Missão Velha. Todos os habitantes o sabiam pelo nome natural de batismo sertanejo , ou seja, “O Pinga” da Cachoeira ou da Lapinha.
Um ‘olho d’água’ que outrora abasteceu com suas límpidas águas, gostosas e azuladas boa parte da então pequena elite missãovelhense. De tão boas, havia até quem apostasse nas suas propriedades medicinais. “Água boa de beber que inté dá pena de gasta no lavar” costumavam dizer as antigas lavadeiras dos rios. Hoje, certamente a tal modernidade a chamaria de “mineral”. Mas, como se percebe, nenhum destas qualidades foram suficiente, o bastante para livrá-lo do atual descaso e do estado de abandono no qual está relegado e submetido como que por castigo.
Protegida por um conjunto de árvores altas e frondosas a nascente permanece ali calma e tranqüila como a olhar para nós. Árvores de troncos enormes com suas raízes sedimentadas sobre as rochas e os lajedos. Algumas espécies conhecidas, outras nem tanto. Muitas até frutíferas tais como Jenipapos, Oliveiras, Mangueiras, além de catolé, oitis, jatobás, cajá, imbu dentre outras. De maneira que nos arredores do “Pinga” era como se estivéssemos todos protegidos por uma grande cobertura natural. Tamanha era a sombra. O sol estava quase a pino e o calor daquela tarde insuportável. Mas, na beira da nascente a sensação era completamente diferente. Um micro clima aprazível marcado pela mais absoluta frescura dos ventos. Um ar-condicionado natural a que todos deveriam experimentar. Quem sabe assim, despertassem para a importância da defesa e da preservação desta maravilha.
Nos anos idos, era comum encontrar pelas veredas daquelas matas um certo senhor sertanejo de pele escura quase tostada pelo sol. Um tangedor de animal – morador do local – a conduzir sob o lombo do seu jumento duas ancoretas contendo o precioso líquido do “Pinga” para os potentados da cidade, principalmente o Dr. Raimundo Alves antigo proprietário do terreno onde a pequena nascente está localizada. Nunca me esqueci daquele homem ‘estradeiro’ com seu asno, todos os dias, pacientemente nas suas idas e vindas a levar a água do “Pinga da Lapinha” para a cidade.
Devido a distância e a dificuldade do acesso ao local cercado de mata quase fechada e de um solo acidentado e pedregoso, não era barato a “carga d’água” do “pinga”. De modo que, beber da água do pinga em casa era, por assim dizer, quase um luxo e para poucos. A água do velho “pinga” da cachoeira era a “mineral” a que todos consomem com facilidade agora. Algumas delas vindo de muito longe e até de outros estados. De modo que hoje, o ‘pinga’ perdeu o seu antigo valor. Caiu no anonimato da história. Ficou esquecido. E aos poucos está sendo engolido e devorado pela pressa e o imediatismo de uma geração dos três “is” - ignorante, insensível e indiferente, as verdadeiras riquezas que a mãe natureza nos legou pela história afora.
Mas, por incrível que pareça a fonte do “Pinga” não morreu. Está lá tranqüila e silenciosa como um cristão da vida resignado com o seu sofrer. Vivendo toda a sua solidão, cochilando sobre os imensos lajedos que margeiam o Salgado desde as belas quedas da Cachoeira. O “Pinga” não morreu, mas corre risco de morte, caso permitamos que o seu sofrimento se prolongue além do suportável.
O abandono do campo também feriu de morte o velho “Pinga”. Ninguém mora mais por ali. A casa de pedra, a única que existia nas imediações por mais de duas décadas encontra-se abandonada, destruída pelo tempo, caindo aos pedaços. As matas tomaram conta de tudo, como se quisesse de volta aquilo que os homens tomaram-lhe um dia e não se deram ao trabalho de preserva, por não “saber cuidar”.
O teto da casa desabou. Contudo algumas das suas antigas paredes ainda estão de pé. Apenas o velho pé de imbu insiste em resisti com seu aspecto verdejante e com seu grosso tronco enrugado a rolar pelo chão como uma serpente enorme. Quem sabe a nos mostrar que de fato a máxima euclidiana de que “ o sertanejo é antes de tudo um forte”.
Porém, não é apenas o “pinga” que está a correr sério risco de desaparecer. A bioma da caatinga em seu entrono, assim como todo o manancial da Cachoeira e do rio estão sob a mira do tiro de misericórdia. Há sinais de destruição dentro da mata. Clareira e derrubadas, veredas rasgadas por máquinas e explosões para a retiradas de um tipo pedras bastante requisitadas para as modernas construções citadinas. Assim como caminhos e caminhos feitos pelo gado bovino criado de modo embrenhado naquela caatinga da cachoeira de Missão Velha. Mas, felizmente ainda é possível se ouvir o canto de pássaros silvestres, árvores endêmicas frutificando e outros bichos. Fauna e flora insistindo na sua antiga e necessária harmonia. De modo que aquilo tudo junto nos invade os olhos, as narinas tocando a nossa pele como se fosse um afago de Deus deixando em nós um pouco de perfume e refrigério.
De resto, andar pelos antigos caminhos que nos levaram ao “Pinga” foi como mergulharmos dentro de nós mesmos. Uma sensação de paz interior nunca dantes experimentada em nossas vidas sertanejas. Algo que, sobretudo nas grandes cidades não tem preço.
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Prof. José Cícero
Aurora - CE.
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WWW.prosaeversojc.blogspot.comFotos: Kledson, JC, Marx e Wesley.