Foto do Cel. Isaias Arruda e da antiga Estação de Aurora
Aurora – apenas uma cidadezinha dos anos vinte como tantas outras quase esquecidas nos grotões nordestinos. Um povoado monótono e aprazível, esmaecido na preguiça de um tempo lento em que a existência do trem, assim como a construção da sua estação ferroviária eram por assim dizer, o maior de todos os sonhos até então realizados nas paragens do Cariri. A mais inacreditável das invenções humanas direcionadas ao progresso dos sertões, até então abandonados no oco do mundo pelos homens da política do litoral.
O trem, portanto era um acontecimento social. Uma festa quase utópica e operística. Uma criação tão fantástica ao ponto de ninguém querer desejar mais nada das hostes do poder. Em última análise, o trem era a glória das glórias... E Aurora de alguma maneira vivia isso em todas as suas plenitudes e conseqüências. O progresso e a modernidade, diziam as elites paroquiais, começavam a dá o ar da sua graça...
Naquela tardezinha quase insossa de sábado, dia 4 de agosto de 1928 quando muitos já se esqueciam dos episódios um ano antes relacionado à presença do rei do cangaço na terrinha; o velho aparelho do telégrafo da RVC de novo estava prestes a receber no código morse um telegrama diferente. Um comunicado estranho; digamos que chave, para todos os desdobramentos do acontecimento dramático que se seguira ao fato: “Antonio, algodão hoje sobe!”. Uma missiva quase enigmática considerando que o algodão – o ouro branco d’Aurora faria sempre o sentido contrário, ou seja, descia. E o seu preço no mercado há muito era de todos conhecido.
A estação de Aurora estava repleta de gente. Um acontecimento que se tornara comum deste a sua inauguração oito anos antes em 7 de setembro de 1920.
A multidão se acotovelava literalmente em toda a extensão da plataforma da estação de Aurora. Curiosos, viajantes, chapeados, crianças e vendedores ambulantes, todos se misturavam numa massa compacto e quase uniforme de gente na eufórica expectativa da passagem do trem.
A pedra da estação estava lotada de aurorenses da sede e dos sítios adjacentes. E até mesmo de cidades circunvizinhas. Era uma tarde calorenta e diferente das demais. Quase uma feira-livre. Uma babel de interesses e fantasias... Aquela espera para todos, era uma eternidade.
Contudo, em meio aos que esperavam aquele trem da RVC, alguns estavam ali com outros propósitos. Muito além dos interesses comuns que animavam a maioria cotidianamente durante as idas e vindas do velho transporte ferroviário. Quem sabe, um acerto de contas. Um negócio em nome do mercantilismo? O que a história, como testemunha ocular do tempo em alguns instantes não demoraria a registrar para à posteridade as verdades insofismáveis daqueles fatos.
E a cronologia do momento seguinte, provaria depois para todos que era um crime. Um atentado violento à ordem e a vida em nome da vingança e da intolerância. Uma intriga passada à limpo, expressa na força da violência e da ignorância em detrimento da razão e da justiça.
Naquele sábado, de tarde escura de agosto, a estação de Aurora não tardaria a ser palco de um episódio que marcaria à história do Cariri e do Ceará para sempre, vez que envolveria, aquele que foi certamente o mais famoso e temível chefe político da região: o coronel Isaias Arruda. Filho do lugar, ex-delegado, agora prefeito pela força da vizinha Missão Velha.
A tarde caia lentamente... O povaréu já parecia se cansar pela lentidão da espera que se prolongava mais que nos dias normais.
O guarda-chave gritara aos presentes em nome do agente Viana de que o trem daquele sábado se atrasaria devido a parada que fez para reparos e reposição nas estações de Iguatu e Cedro. No entanto já deveria está nas proximidades de Arrojado, Lavras ou Iborepi.
Ingazeiras e Missão Velha também solicitaram informações pelo telégrafo por conta do atraso da locomotiva, disse o Viana com os olhos voltados para a curva da linha de ferro ao Norte onde o trem da feira deveria a qualquer momento apontar seu bico.
O relógio do prédio apontava 14h25min quando, finalmente, todos puderam escutar o apito estridente da máquina a ecoar no horizonte. Apenas Sabina* entretida demais com o seu café não se deu conta do acontecido. Todos, de repente voltaram suas atenções na direção do corte-grande lá para as bandas do alto da cruz, do sito Frade. O trem da Fortaleza vinha ligeiro beirando o rio Salgado.
Ao longe foi possível ouvi mais um apito e o barulho forte da locomotiva esbaforida pela temperatura como um gigante estremecendo o solo aurorense. Em seguida, um torvelinho enorme de fumaça coloriu o céu da Aurora de um escuro forte e bizarro nuca dantes visto pelas pobres alma. Cheiro de brasa, madeira queimada pelo ar. Como se a caldeira e fornalha da Maria-fumaça só quisessem queimar um estoque infindável de jurema braba.
A meninada num frenesi gritava de cima do morro para os demais: lá vem, lá vem o trem, tirem o cachorro do meio que o bicho não enxerga ninguém...
Quando enfim, o trem apontou sua cara na curva da linha. Foi um alvoroço deveras interminável. Um Deus nos acuda. A multidão acorreu para a pedra. E o comboio começou a ficar cercado de gente por todos os lados. Era como se toda a cidade estivesse ali, naquele instante, dando vivas ao trem com seus passageiros caririenses.
Nesse ínterim: Um bêbado no meio do povo, do alto do seu entusiasmo etílico até exclamou exaltado:
-Vixe Maria! Deus me ajude... Um dia ainda me caso com esse trem danado...
Agora o relógio da estação cravava exatos 14h30min. As rodas da máquina de ferro começavam a riscar os trilhos daquela estação. Uma sensação estranha, uma ilusão de ótica... Como se o prédio e as pessoas estivessem passando e o trem permanecesse petrificado em seu estado inercial.
Os primeiros vagões da primeira classe já beiravam a plataforma. Todas as atenções agora estavam voltadas para as janelas e portas do trem intupetado de viajantes e, que já parara completamente. Os vendedores se agitavam oferecendo os seus produtos alimentícios: água fresca nos potes e nas quartinhas de barro. Frutas, comidas, bolos, salgados e outras guloseimas... Toda a gastronomia tradicional da Aurora parecia está ali desfilando seus dotes na estação do trem para a freguesia. Um incentivo direto ao pecado da gula dos passageiros e transeuntes.
Exímios chapeados transportavam com pressa e celeridade grandes caixotes, pacotes e outros fardos de mercadorias. Uns descian para o armazém da RVC outros subian para os vagões do trem com destino ao Crato. Animais, peças de madeira, artesanato, aguardente, rapadura, oiticica, panelas de barro. O trem acelerava a curiosidade, tanto quanto a economia daquela terra.
Mas de repente o som de um tiro seco ribombeou no ar. Quebrando a normalidade natural daquele acontecimento diário. Em seguida vários outros disparos puderam ser ouvidos no interior do segundo vagão da primeira classe. Talvez sete ou oito no total... Até hoje ninguém sabe ao certo. Um silêncio quase sepulcral se abateu na plataforma por alguns instantes que pareceram eternos. Somente o ronco da locomotiva estacionada de fronte a caixa d’água. Em seguida uma correria...
O coronel ferido seriamente pronunciava baixinho como que cansado:
- Os irmãos paulinos me acertaram! Mas como é que nem o Viana nem ninguém me avisou que meus inimigos estavam aqui?! Bando de covardes...
E de chofre emendou:
- alguém me chame o farmacêutico! Foram os Paulinos, eles me acertaram... Bando de covardes!
A multidão agora abria caminho para o pessoal da RVC. Muitos correram na direção da rua, se afastando da cena do crime, talvez com medo de um novo tiroteio. As janelas dos vagões agora estavam cheias de curiosos passageiros, ainda que perplexos.
Outros mais ousados e corajosos aos poucos foram se aproximando da vítima que gemia deitada ao solo da pedra sobre as folhas do jornal ‘O Ceará’. Enquanto isso, um pouco afastado da estação José Furtado(Nequinho de Milica) primo da vítima saíra em perseguição(ou fugindo) dos irmãos paulinos: Antonio e Francisco, responsáveis pelo atentado.
Levado para a residência de Augusto Jucá um antigo amigo na rua grande, Isaias foi socorrido, inicialmente por um farmacêutico - o único que existia na cidade. No dia seguinte dois médicos vindo de trole pela linha da RVC: Antenor Cavalcante e Sérgio Banhos atenderam o coronel. Porém, diante das gravidades dos ferimentos não tiveram como salvá-lo. Sendo que no dia 8 de abril uma quarta-feira às 6h da manhã, quatro dias após ser alvejado, Isaias Arruda faleceu como que por capricho do destino na terra em que nascera.
Rumores apontaram ter sido o assassinato uma vingança de Lampião pela traição do coronel um ano antes, durante a célebre tentativa de envenenamento do bando lampiônico e o histórico cerco de fogo do sítio Ipueiras, propriedade de Arruda em Aurora em cujo local Virgulino se arranchara por diversas vezes. Ocasião em que o rei do cangaço fugia das volantes após o fracasso da invasão de Mossoró, arquitetada sob as estratégias de Massilon Leite e financiada pelo próprio Isaias.
Mas o certo, segundo se provaria depois foi que os paulinos vingaram o assassinato do irmão mais velho João, morto numa emboscada no serrote d’Aurora pelos jagunços de Arruda no ano anterior.
Terminava ali de modo trágico, na estação ferroviária de Aurora a verdadeira saga de um dos mais temíveis e respeitados coronéis do Cariri - Isaias Arruda. Assim como sua rixa ferrenha contra os irmãos paulinos da Aurora.
(*) Prof. José Cícero
Fonte:
O Ceará em Brasília - 'O sangue de Isaias Arruda' - J. J de Oliveira. Pág. 5 edição de 1997.
Aurora: História e Folclore - pág. 155 - 2ª edição. 'Crônica dos Paulinos' – A.G. Tavares – 1996.
Missão Velha: Nosso Povo, nossa História - Célia Magalhães – 1994 Ed. Universitária.
Lampião – o rei do cangaço – Billy Jaynes Chandler - ed. Paz e Terra – 1980.
Revista Aurora – (J. Cícero). edições de 2007-2008: 'Incursões de Lampião e seu bando por Aurora'.
Arquivo pessoal do autor e pesquisa oral.
http://www.jcaurora.blogspot.com/
http://www.aurora.ce.gov.br/http://
www.blogdaaurorajc.blogspot.com/
http://www.seculteauroera.blogspot.com/
Gostaria de parabenizar a atitude, por demais louvável, engrandecedora do secretário de Cultura de Aurora, o abalizado professor Jose Cicero da Silva, que tem feito de sua adminstração à frente desta pasta, uma verdadeira revolução, desde os tempos primeiros da revista Aurora, quando o editor Jose cicero, já em pesquisa, levou à Lume para o mundo que Lampião foi sagrado na ordem santa cruz - Os penitentes - no dia 03 de junho,1927,na Brauna Santa, antiga Emboscada de Lampião.{Hoje Sitio Martins} O Escondido de Lampião no Sitio Izaira, a descoberta do Auto de canudos, conhecido como a bailarina, que foi também repassada ao publico sobre esta igreja rural laica adormecida no sitio carro quebrado, a contância de José Cicero pelo resgate da historia Aurorense soa como uma missão espiritual, pois, toda a sua história "tragica e tremenda" como um novelo de linha vem se desenrolando dando força, pulso e voz a um cidade que foi silenciada, tendo inclusive, seu livros queimados em praça pública, e que hoje, este "predestinado" busca em uma história perdida, em uma oralidade também perdida, os fragemnos de uma historia que não quer calar. Praza Deus, a equipe do cariri Cangaço possa de fato e de direito juntamente com josé Cicero passar a limpo esta historia tão bem escondida nos umbrais do tempo e do espaço na terra do Menino Deus. Que o diga Isais Arruda ? Já é chegada a hora coragem irmão, conte comigo.
ReplyDeleteLuiz Domingos de Luna, Mestre de Ordem, Ordem Santa Cruz- Penitentes - Santa igreja de Roma forania do cariri aos 29 dias do mês de abril,2010
Gostaria de parabenizar o ilustre escritor pela bela história sobre a morte do coronel Isaías Arruda.
ReplyDeleteJosé Menes Pereira - Mossoró - Rio Grande do Norte.