Sunday, November 22, 2009

“Repentistas na feira-livre de Aurora, um ato de resistência da cultura popular”



Poetas: Nelinho do Repente e Chico Balbino em plena versificação do improviso
Uma visão que aos poucos vem ficando cada vez mais rara no nosso dia a dia interiorano...
Trata-se das apresentações culturais que no passado eram comuns no meio das feiras-livres do nosso interior e até mesmo das capitais nordestinas.
Com quase nenhum espaço institucional voltado para a arte e a cultura tradicional naqueles anos difíceis, eram necessárias algumas saídas alternativas. E os artistas ao seu modo as fizeram com grandeza e maestria: as feiras-livres como palco de suas apresentações até como uma forma de agregar valor as mercadorias de alguns vendeiros-viajantes; verdadeiros maqueteiros do nosso passado. Com a total inexistência de canais públicos, os artistas dos grotões do mundo sertanejo faziam uso da sua verve inventiva e criativa para ganhar alguns trocados fazendo suas apresentações para grandes platéias no meio das feiras em cidadezinhas perdidas pelo oco do mundo. Por sinal, um ambiente dos mais populares e multifacetados que tinham a cara e o jeito da cultura e da arte popularizadas pelos sertões.
De modo que as feiras-livres do nosso interior, sobretudo, se transformavam de vez não apenas num espaço de trocas mercantis, bugigangas e outros produtos do 'celeiro' sertanejo, mas principalmente possibilitando um ambiente dinâmico à ludicidade ao lazer e ao entretenimento barato para uma gente que no mais das vezes, não tinha acesso sequer ao rádio, ao circo, ao teatro, ao mamulengo, enfim ao mínimo das ferramentas que existiam numa época em que fazer cultura e arte era coisa para quem não tinha mais o que fazer na vida.
Neste contexto de imensas agruras e dificuldades a feira-livre era uma festa. E mais do que isso: um espaço dos mais democráticos e socializantes aberto à criatividade dos que faziam de algum modo, uso da cultura artistica, do folclore, assim como de outras invenções populares, às vezes misturando-as com o interesse comercial. Algo que muito ajudou a população dos sertões, distante de tudo, a conhecer a arte do seu dia a dia. Como um atributo da sua própria lida cotidiana em que as manifestações da cultura popular também de alguma maneira faziam parte... Afinal de conta quem não recorda com uma ponta de saudade: do casimiro coco, do homem da mala e da copra, do caipira, do cego sanfoneiro, dos emboladores, dos recitadores de versos d cordéis, do homem que engolia espadas, facas e prégos, dos retratistas com as suas lambe-lambes, dos grandes desafios dos violeiros antigos, das louceiras com as suas belas peças do mais puro barro da ribeira, dos santeiros, da vendedora de bonecas de pano, das artesãs das flores coloridas dos santos, do flandeiros com os seus objetos criativos e candeeiros, dentre outros artesãos que como deuses tinham o dom de dá vida à matéria inanimada e plásticidade ao fazer artístico pelas mãos, inteligência, gesto e voz.
Conquanto, muito do que ainda nos resta hoje das tradições artísticas do passado, devemos ao ambiente franqueado pelas feiras-livres de outrora. Pena que hoje, tudo isso está desaparecendo da nossa realidade social, afogada no lamaçal da modernidade dos amplos mercantis, super/hiper mercados, shopping center e tantas outras denominações e invenções modernas e modernizantes. Ao ponto de as pessoas, notadamente à juventude estudantil admitirem ter vergonha de fazer nos dias atuais, suas compras nas feiras-livres.
Portanto, a presença de repentistas populares das feiras de Aurora, constituir(ainda hoje) um ato de pura resistência a este fantasma da pós-modernidade – a cultura dos enlatados - que muito deseduca, desinforma, descaracteriza e afasta o povo das suas raízes socioculturais, bem como da sua necessária autenticidade. Ou seja, a cultura alienígena imposta a todos pela mídia, vem quebrando de forma sistemática a identidade de toda uma geração com o seu passado e as manifestações da nossa cultura popular.
Outro dia em plena tarde de sábado, final da feira-livre deparei-me com uma rara surpresa: uma roda de pessoas no meio da feira a assistirem naquele calorão, mesmo embaixo das poucas árvores que ainda restam no centro comercial, uma dupla de violeiros – Nelinho do repente(da Ingazeiras) e Chico Balbino(Patos) com seus belos motes e improvisos ao sabor do que pedia os fregueses espectadores. Os dosi repentistas populares faziam por assim dizer, a única alegria que se percebia no pouco que ainda existe da feira-livre de Aurora. Um momento em que todas as reminiscências do nosso passado povoavam num turbilhão de recordações a nossa cabeça plena de esquecimento e ilusões. Por isso precisamos incentivar de todas as formas possíveis estes artistas do povo, posto que estão além do tempo presente: do passado e do futuro. São todos eles que constituem a ponte frágil que ainda nos ligam ao passado das nossas verdadeiras manifestações da cultura popular.
Por: José Cícero
Sec. de Cultura/Aurora-CE.
Leia mais em:
blog do Crato
Especial para a Revista Aurora.

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